
Da quebrada para o mundo
Por Dandara Tonantizin
Antes mesmo da minha mãe sentir as dores do parto, o pai dela, meu avô, pressentiu a chegada da neta. Ele seguiu a intuição e partiu de Ituiutaba junto com minha avó para me receber na pequenina cidade mineira de Gurinhatã.
Vim ao mundo no final de uma tarde de domingo por uma cesárea feita numa maternidade do SUS.
Nasci no mesmo dia do aniversário do premiado escritor João Ubaldo Ribeiro, em 23 de janeiro de 1994. Nessa data, em 1963, começava a guerra pela Independência da Guiné-Bissau, que durou uma década. Mais uma de tantas lutas do povo africano contra os algozes portugueses.
O ano de 1994 foi marcante para o Brasil. O país controlou a inflação galopante, inaugurando uma nova moeda, o Real. O salário mínimo na época era 70 conto! Nesse ano também perdemos um ídolo do esporte numa curva, ganhamos o Tetra na Copa do Mundo e FHC era eleito Presidente.
Meu nome
Uma poetisa de Ituiutaba registrou com delicadeza o meu nascimento no seu livro “Miryam ou Flor de Manacá”. Ednair Muniz narrou que o meu nome Dandara Tonantzin tem origem negra e índia, assim como eu.
Dandara foi uma guerreira, companheira de Zumbi, o líder da resistência do Quilombo dos Palmares. Tonantzin era uma divindade feminina adorada pelos índios mexicanos no mesmo local em que depois da aculturação pelos europeus veio aparecer a virgem de Guadalupe.

Sou filha de um filósofo branco e de uma preta pedagoga, que por muitos anos trabalhou como doméstica, como é a sina de muitas mulheres negras.
Na infância, vivi numa favela em Justinópolis, um distrito de Ribeirão das Neves na região metropolitana de BH.
Era uma comunidade organizada, porém refém da violência como acontece na maioria dos bairros pobres e periféricos. Um lugar com direito de menos e porrada demais. Dos amigos de infância, vários já foram assassinados pelo crime ou pela polícia. Vi de perto o genocídio silencioso e ensurdecedor da juventude preta.
Mudei-me para Uberlândia na adolescência. Morei um tempinho no Luizote e depois vim para o “grande” São Jorge, onde me criei. Amo nosso bairro.
Sempre estudei em escolas públicas. Em Uberlândia, passei pela municipal Eurico Silva e pelo estadual Messias Pedreiro. Dali fui direto para Universidade aos 16 anos.
Entrar numa Federal é um orgulho para a família e faz muita diferença na trajetória de uma jovem, que queria ser pedagoga como a mãe.
Entrei na UFU por uma cota e a valorizo demais. Acredito que essa é uma reparação muito ínfima diante da exploração brutal a que meus ancestrais foram submetidos durante séculos de escravidão.
Se para cada chicote estalado ou bala disparada contra um jovem negro correspondesse a uma vaga na universidade, a realidade do país seria outra.
Dizem que a universidade muda a nossa vida. É verdade, a minha mudou muito.
Desde o início me engajei em tudo que podia. Tornei-me uma líder estudantil, fui do DA, DCE e da UEE. Participei de inúmeros protestos, cantei muita musiquinha. Falei pelos cotovelos em reuniões infindáveis. Fui para Brasília representar o Coletivo Enegrecer no Conselho Nacional de Igualdade Racial.
Viajei para todo canto do país para discursar, fazer política, dar palestras e pensar um mundo melhor.

O Turbante
Nem tudo foram flores. O racismo está por todo canto e na universidade também.
Num baile de formatura dos meus amigos da engenharia civil, senti na pele mais uma vez o quanto a nossa presença incomoda.
Escolhi ir a essa festa com um turbante elegante.
No entanto, desde o início notei olhares incomodados. Os vários elogios me acalmaram, mas no finalzinho da festa, já do lado de fora, um cara branco puxou forte o meu turbante.
Depois da minha reação, ele acenou aos amigos. Fizeram uma rodinha em minha volta até que um deles puxou o turbante da minha cabeça e o jogou no chão. Ainda incrédula, quando fui catá-lo, despejaram cerveja em mim.
Não deixei quieto. Esbravejei, fiz o que pude para me defender. Já em casa, com raiva, aborrecida, magoada e insultada por aquela situação patética, escrevi um post no facebook e, então, dormi.
Quando acordei a mensagem tinha ganhado o mundo. Milhares de compartilhamentos em solidariedade. Essa história revoltante virou reportagem de jornais e acabei indo parar na Globo no Encontro com a Fátima Bernardes.
Episódios de racismo são diários, mas são raros os que ganham notoriedade. No dia a dia, o racismo é uma prática constante, silenciosa e silenciada.
No meu caso, as autoridades judiciárias negaram o seguimento da ação que movi contra aqueles rapazes.
Os “Doutores da Lei” alegaram que o episódio se tratou de uma mera falta de educação e que a injuria racial estava na minha cabeça.
Sabemos bem que os juízes, os promotores e os guardas prendem e condenam mais negros e absolvem mais brancos. Esse é um fato inegável.
Então, decidi para mim mesma, que antes de tudo, que a luta antirracista cabe a nós pretos. Pois, se dependermos apenas das atitudes dos brancos, o racismo nunca acabará.
Paulo Freire tem razão: somente o oprimido pode libertar o opressor.
Desde pequena tive a consciência de que eu era negra. Aos seis anos, na escola, era a única criança preta da sala.
Num surto de piolho comum a qualquer escola, fui logo apontada como a piolhenta pela professora, sem que tivesse sequer uma lêndea na cabeça. Minha mãe recebeu um bilhete enorme, mas aquele desaforo não ficou sem resposta.
Muitas vezes o racismo se manifesta pelo simples fato da gente ser preterida. Há uma segregação simbólica, que a maioria dos brancos nem veem. Isso nos mobiliza a nos defendermos desde cedo. Tive ótimos exemplos em casa.

Por tudo isso, escolhi ser uma educadora e batalhadora. Nutro no peito uma vontade incansável de vencer as injustiças, de resgatar a nobreza dos meus ancestrais, de conquistar oportunidades aos meus semelhantes, de ser reconhecida pela minha pele, minha personalidade, minha dedicação e habilidades.
Tenho a convicção de que é preciso destruir a herança escravocrata da sociedade brasileira, incendiar e desmoralizar as instituições estruturalmente racistas e machistas, distribuir a riqueza, e o principal: por fim ao modo de produção econômica baseado na exploração do trabalho.
A Educação é estratégica nessas batalhas para transformar as pessoas e a sociedade.
Nas escolas, os estudantes precisam se reconhecer no que é ensinado. Precisa haver uma ponte que leve da educação infantil à universidade e, mais do que isso, os saberes devem estimular a autonomia e o altruísmo.
Essas são lutas históricas que envolveram e ainda envolverão muitas gerações. Sinto-me parte delas e que tenho um dever existencial de honrar aos que me antecederam e entregar um legado melhor do que recebi aos que nos sucederão.
Agora, aos 26 anos, estou pronta, preparada e disposta a representar essas causas e as pessoas que acreditam nelas e em mim.
Sei que o caminho é pelo coletivo, sem personalismos ou individualismo.
Queremos construir uma cidade onde todas as pessoas vivam bem. Uma cidade onde as escolas são organizadas, em que o quadro é como um espelho e os estudantes se reconhecem no que é ensinado.
Lutamos por uma cidade em que todos e todas tenham abrigo com conforto, espaço e dignidade. Uma cidade que cuida das praças, parques e jardins, com ruas bem iluminadas e seguras. E nas unidades de saúde, os profissionais entendem o que os pacientes dizem e cuidam deles até ficarem saudáveis novamente.
Uma cidade onde os talentos artísticos estejam nos palcos e nas plateias, fazendo e experimentando a arte. Uma cidade em que o busão seja bom e barato, que os gastos e investimentos da prefeitura sejam abertos e transparentes.
Enfim, queremos uma cidade em que o sonho de futuro não seja pesadelo nem ilusão, uma cidade em que a utopia é o projeto.
Quero ser uma voz negra contra o racismo, uma voz feminista contra o machismo, uma voz periférica em defesa dos direitos, uma voz trabalhadora contra a exploração, uma voz libertadora por um mundo justo e igualitário.
Portanto, é com muito prazer, força e garra que anuncio a minha pré-candidatura a vereadora de Uberlândia pelo Partido dos Trabalhadores e das Trabalhadoras.
Dandara Tonantzin Silva Castro, pedagoga e mestranda em Educação pela UFMG. Pré-candidata a vereadora em Uberlândia pelo PT.
